segunda-feira, 31 de maio de 2010

Jornal da Cidade - 28/05/2010 - Geral

Debate do toque de recolher destaca a falta de políticas para adolescentes


por Luciana La Fortezza

A audiência pública realizada ontem para discutir a proposta da Polícia Militar de implementar em Bauru o toque de recolher expôs, novamente, a falta de políticas públicas voltadas a crianças e adolescentes. O evento, que lotou o auditório da Subseção local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), contou com a presença maciça de representantes de entidades contrárias à medida, que prevê limite de horário para pessoas com idade inferior a 18 anos permanecerem na rua à noite.

O idealizador da proposta, o comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar do Interior (4º BPM-I), tenente-coronel Nelson Garcia Filho, foi o primeiro a abordar a questão após a formação da mesa. Em sua fala, ressaltou que o toque de recolher visa não somente deter a criminalidade juvenil, mas principalmente proteger os jovens de perigos como o crack. A preocupação foi considerada pela psicóloga e professora universitária Juliana Pasqualini como estratégia de convencimento para a aplicação da medida.

Para ela, o intuito real da iniciativa é proteger a sociedade dos próprios adolescentes, que tornam-se vulneráveis à medida que não dispõem de qualquer perspectiva de futuro. Para a maioria dos presentes na audiência, o toque de recolher representa um apartheid social. Passa a falsa ilusão de que se faz alguma coisa para proteger crianças e adolescentes, sendo que nenhuma política pública capaz de alterar as condições de vida a que eles estão submetidos é implementada.

Já para os defensores da proposta, é fácil fazer discursos longe das ruas e analisar tragédias familiares no conforto de casa, como se fossem filme. “E não temos nem o direito de tentar?”, questiona Garcia. Na opinião dele, não trata-se de cárcere privado porque os jovens terão horário, mesmo que limitado, para usufruir da noite. Poderão permanecer nas ruas até meia-noite (aos sábados, domingos e feriados). De segunda a sexta, até as 23h. Em alguns municípios, o limite não chega às 23h.


Autoritarismo

No entanto, para o advogado Ariel de Castro Alves, representante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), trata-se de um estado de sítio. Na opinião dele, além de ser um retrocesso do ponto de vista histórico, o toque de recolher pode ser entendido como um atestado de que nada foi feito em benefício às crianças e adolescentes. Para Alves, não passa de uma medida demagógica, oportunista, além de autoritária, que visa tirar crianças pobres das ruas. Ele questionou se o toque terá a mesma eficácia em condomínios fechados, por exemplo.

Garcia, no entanto, ressaltou que, atualmente, o tráfico de drogas alicia jovens de todas as raças e classes sociais. Lembrou um trecho de matéria publicada pelo JC há um ano, quando o toque começou a ser implementado em algumas cidades paulistas. Na ocasião, o professor de história da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Célio Losnak foi entrevistado. “É fácil dizer ‘vamos reprimir’. Como é fácil dizer ‘não vamos reprimir’. Não estamos mobilizados para pensar o problema”, disse na oportunidade.

Mas o fato do assunto promover uma discussão entre cerca de 200 pessoas, ontem, foi elogiado por todos os presentes que se manifestaram. Foi unânime, assim como a constatação da ausência de políticas públicas suficientes para atender todas as crianças e adolescentes de Bauru.

Jovem ex-dependente de drogas deu testemunho a convite da PM

A convite do tenente-coronel Nelson Garcia Filho, Cristiano de Souza Almeida, 22 anos, prestou seu depoimento durante a audiência de ontem. Contou que aos 10 anos foi levado pelo grupo de amigos a usar droga. Era justamente madrugada quando decidiu ceder e experimentar - após resistir algumas vezes às ofertas. A partir de então, sua vida tornou-se um inferno, garantiu. Com o apoio da mãe e do patrão, Fernando Mantovani, conclui há seis meses seu tratamento no Esquadrão da Vida. Colocou-se como favorável ao toque de recolher.

Deu o testemunho na presença do patrão, que também é vereador. Além dele, o único representante da Câmara Municipal anunciado no evento foi Natalino da Pousada. Nenhum outro parlamentar compareceu. O prefeito de Bauru, Rodrigo Agostinho, também não esteve presente. Foi representado pela titular da Secretaria Municipal do Bem-Estar Social (Sebes), Darlene Têndolo, que se manifestou contra a medida.

Ao colocar-se como funcionária pública e assistente social, lembrou que a liberdade hoje usufruída foi conquistada com o sangue de muitos jovens que lutaram contra a ditadura e com as lágrimas de muitos pais que perderam seus filhos. Se comprometeu, com a ajuda de todos os presentes, a construir programas inovadores que atendam à juventude em Bauru.


Juiz decidirá após parecer do MP

O juiz da Vara da Infância e Juventude, Ubirajara Maintinguer, decidirá em aproximadamente um mês se Bauru implementará o toque de recolher. Nos próximos dez dias, interessados poderão enviar ao Ministério Público manifestações sobre o assunto. Também com base dos argumentos, o promotor Lucas Pimentel de Oliveira concluirá seu parecer e o encaminhará ao magistrado, que se manifestará sobre o tema.

O promotor demonstrou interesse especial nas falas de representantes de bairro. Uma delas, Maria Helena de Lima Menezes, do Conseg Leste-Norte, mostrou-se favorável ao toque de recolher. Disse que acompanha o desespero de mães que não sabem o que fazer com os filhos dependentes químicos.

Contou que sempre viveu com limites em casa e nem por isso enfrentou problemas com pais ou filhos. Na opinião dela, os discursos durante a audiência foram políticos. Já Osvaldir Martins, do Conseg Oeste-Noroeste, teme que o toque de recolher represente apenas mais uma forma de repressão contra pobres e afrodescendentes. Cobrou políticas públicas, mais escolas e menos presídios. Por representarem a comunidade, suas colocações foram consideradas legítimas pelo promotor.

O debate foi aprovado tanto pelo membro do MP quanto pelo juiz, que classificou a audiência como tranquila. Havia rumores de que uma manifestação de repúdio ao toque de recolher seria realizada.

“O jovem julga de forma severa porque julga com o que aprendeu. Já a pessoa com mais idade julga com complacência porque julga pelo que viu”, comentou Maintinguer. De acordo com ele, todos os presentes serão um pouco responsáveis pela decisão que será conhecida em breve.


Problema antigo

A ausência de políticas públicas para crianças e adolescentes é um problema antigo. Pelo menos desde 2002 se discute o mesmo assunto em Bauru sem que nada tenha sido feito. A advertência partiu de Primo Mangialardo, que representou o Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) e o Conselho Comunitário de Segurança (Conseg) Centro-Sul, no evento de ontem. Por essa razão, ele se disse favorável ao toque de recolher.

Reiterou que crianças e adolescentes não entrarão em camburão, não serão recolhidos pela polícia, nem estarão sujeitos a grades, como nos anos de chumbo. Ainda assim, a repressão e o período de ditadura foram lembrados nos discursos da maioria dos que usaram a palavra.

O representante do Conanda Ariel de Castro Alves, inclusive, ressaltou o quanto os jovens lutaram pela redemocratização do País e como participaram de movimentos como o que resultou no impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Ressaltou o quanto natural e importante é a rebeldia nessa fase da vida.

Entre uma fala e outra, teve quem admitiu o desejo da sociedade na construção da paz e segurança. No entanto, nesta busca, imputa-se à família uma responsabilidade que também é do Estado. Pai e mãe são obrigados a resolver em casa as consequências de problemas decorrentes da falta de acesso a saúde, educação e lazer. Se não conseguem controlar os filhos que vivem qualquer perspectiva de vida, a culpa é deles, não da omissão do Estado. Participantes também defenderam o trabalho com as famílias, muitas vezes desestruturadas. Numa situação de carência emocional e material, os adolescentes ficam mais vulneráveis ao crime.

Eles nunca são lembrados quando aguardam numa fila por educação e saúde, mas sim quando estão com uma arma na mão, frisou Ariel de Castro Alves. Justamente para evitar tal assédio é que os defensores do toque de recolher lutam pela medida, considerada protetiva. Nesse sentido, a batizaram como toque de acolher. Se implementado, uma portaria poderia abrir exceções de horários em eventos especiais como a Copa do Mundo.

“Não é repressão, não é separar o rico do pobre”, garante Primo. Ainda assim, o próprio Conselho Tutelar entende a situação como vexatória e discriminatória para crianças e adolescentes.




70% dos crimes ocorrem entre 8h e 22h, afirma advogado do Conanda


Não só no Brasil, como no mundo, 70% dos crimes são registrados das 8h às 22h, segundo o representante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), advogado Ariel de Castro Alves. Não por acaso, o toque de recolher em municípios onde foi implementado não resultou em queda nos índices de criminalidade.

Para ele, os limites devem ser estabelecidos pelos pais, sujeitos a sanções previstas no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “O Estado não pode intervir de forma abusiva na vida das pessoas. Basta aplicar a lei, não são necessárias medidas de histeria”, disse Alves. De acordo com o representante do Conanda, o jovem só aprenderá a viver em liberdade se usufruir dela.

Ele defendeu programas com educadores sociais, o fortalecimento de entidades que trabalham na área e combate ao crime. Além disso, na luta contra o tráfico, diversos presentes ressaltaram a fragilidade dos serviços oferecidos, que não dispõem, por exemplo, de atendimento 24 horas a usuários e seus familiares. A Campanha Nacional de Combate ao Crack, lançada pelo governo federal, também foi lembrada.

“Essas medidas estão claras e deverão ser implantadas em todos os municípios. Uma delas é aumentar o número de leitos nos hospitais, ampliação dos CAPs que devem atender 24 horas, construção de abrigos para permanecerem no máximo 40 dias, consultórios de rua, que não existem em Bauru. Não existem também as casas de passagem para moradia transitória ao usuários. Outra coisa que falta é o centro de convivência para usuários”, comentou a psicóloga Maria Orlene Daré.

Sem acesso à saúde, educação e cultura, muitos jovens têm tomado a zona sul de Bauru, onde as opções de lazer estão concentradas. Esse avanço da periferia em áreas de classes mais abastadas foi apontado por vários presentes como responsável pelo interesse no toque de recolher que, inclusive, teria como objetivo.
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