sábado, 13 de dezembro de 2008

REVISTA VEJA

A besta está solta

Por André Petry
17.12.2008

"Há um ano, Carlos Rodrigues Junior, 15 anos, foi morto sob tortura, dentro de casa, por seis policiais. Todos estão soltos e ainda fazem parte da polícia"

A besta humana precisa ser contida em qualquer lugar. Em Nova York, em São Paulo, em Mumbai. Ela está à espreita em qualquer cidade, qualquer tempo, qualquer povo. Existe em médicos, pedreiros, padres, jornalistas, policiais. E precisa ser contida. A besta humana pôs a cabeça para fora no dia 15 de outubro numa estação de metrô em Nova York. Um policial capturou um rapaz de 24 anos que fumava maconha e sodomizou-o com seu cassetete retrátil. Foi um escândalo. O prefeito Michael Bloomberg teve de vir a público dar explicações sobre a aparente lentidão com que a polícia apurou o caso. (A investigação durou um mês e meio!) Disse que, no início, o caso não parecia tão óbvio como ficou depois. O governador foi instado a se explicar para que a besta não volte a atacar.

Nesta semana, faz um ano da morte de Carlos Rodrigues Junior, 15 anos. Ele foi assassinado de madrugada por seis policiais dentro de sua própria casa, em Bauru. A repercussão foi grande na época. Os policiais foram presos em flagrante. O governador José Serra veio a público condenar a "brutalidade inaceitável" e, num gesto exemplar, mandou indenizar a família da vítima, mesmo antes da decisão judicial. Queria mostrar que a besta humana tinha de voltar para a jaula.
Passado um ano, o que se tem? Os policiais, todos os seis, estão soltos. Os cinco praças foram libertados em abril. O oficial, um tenente, foi solto um pouco depois, no fim de junho. Estão afastados do serviço de rua, mas – um ano depois! – todos ainda integram a Polícia Militar. Não foram expulsos. O governador que mandou indenizar a família da vítima parece que estava mais interessado nos aplausos ao gesto exemplar do que na brutalidade da besta. Tanto que, no assassinato do mecânico Jorge Lourenço Junior, 22 anos, também cometido por policiais, também em Bauru e também no ano passado, a família não recebeu um centavo. O caso é tão descarado que a polícia, apesar de seu tradicional corporativismo, já expulsou os três matadores. É pena que o governador, pelo que se vê, não o tenha achado tão descarado assim. O certo é que o assassinato do mecânico, por alguma razão, repercutiu muito menos.

Isso tudo quer dizer que ninguém tem o direito de ficar surpreso se a polícia de Bauru se sentir autorizada a soltar a besta humana de novo. A de Nova York, não. O policial agressor logo irá a julgamento. Pode pegar 25 anos de cadeia. Se um policial nova-iorquino voltar a agredir alguém sexualmente, as conseqüências serão rápidas e severas. Houve um caso parecido há dez anos. Um imigrante haitiano foi detido e sodomizado dentro do prédio da polícia com um cabo de vassoura. O crime teve ampla repercussão e o policial pegou trinta anos de cadeia. Talvez por isso a besta tenha levado dez anos para reaparecer agora, no metrô de Nova York.

Seria um consolo pensar que a polícia passará dez anos sem matar ninguém em Bauru.
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Leia a coluna de André Petry publicada em 26.12.2007 na Revista VEJA:

As mortes de Carlos

"Os índios caetés, que devoraram o bispo Sardinha em 1556, são os antepassados culturais dos seis policiais que mataram o garoto de 15 anos depois de torturá-lo com choques elétricos"

A primeira morte de Carlos Rodrigues Junior, adolescente de 15 anos, aconteceu na madrugada de sábado 15, em Bauru, no interior de São Paulo. Seis policiais entraram na casa do garoto, em plena madrugada, foram até seu quarto e lá ficaram por uma hora e onze minutos. O rapaz foi torturado com choques elétricos, enquanto sua mãe e sua irmã ficavam na sala, impedidas de entrar no quarto, escutando seus gritos e gemidos. Carlos era suspeito de roubar uma moto. Não tinha ficha policial. O laudo do Instituto Médico-Legal encontrou em seu corpo trinta marcas de choques elétricos, duas no coração, além de escoriações no rosto e no tórax. Na viatura dos policiais, havia um fio elétrico.

A segunda morte de Carlos deu-se nos dias subseqüentes. A notícia saiu aqui e ali, mas tratada quase com a leveza da rotina. O presidente Lula estava ocupado demais para tratar de um assunto que não lhe rende votos e, afinal de contas, ocorreu no estado de seu amigo imaginário, o governador José Serra. O próprio governador disse que o caso mostrava uma "brutalidade inaceitável", e mais não fez nem disse. Enviar condolências à família? Não se teve notícia disso. Participar do enterro, ir ao velório? Também não se soube disso. Mostrar de algum modo, com a presença física, que o inadmissível aconteceu? Nem pensar. Serra preferiu seguir um modelito mais ou menos parecido com o implantado pela governadora Ana Júlia Carepa, do Pará, quando da descoberta da menina enjaulada com um bando de marmanjos. Só não culpou o passado e os antecessores porque não dá.

Os índios caetés, que devoraram o bispo Sardinha em 1556, são os antepassados culturais dos seis policiais. Pois hoje, na terra dos ex-selvagens e na entrada do terceiro milênio, o recado é o seguinte: o brasileiro Jean Charles de Menezes, assassinado com oito tiros pela polícia inglesa ao ser confundido com um terrorista, é um absurdo. Não pode. Mas os ingleses precisam entender que nós mesmos podemos fazer esse trabalho com os nossos. A prisão de Abu Ghraib, cadeia que se tornou símbolo das atrocidades de Saddam Hussein, que também virou símbolo da tortura e da humilhação infligidas pelos soldados americanos aos presos iraquianos, é um escândalo. Mas, no Brasil, nós mesmos nos encarregamos de fazer isso com os próprios brasileiros.

No velório de Carlos Rodrigues Junior, sua mãe, Elenice Rodrigues, percebeu que o filho estava com os dedos quebrados. O advogado de um dos policiais também compareceu ao velório, só que acompanhado do cidadão que teve sua moto roubada. O motivo da visita era reconhecer o assaltante. O ladrão, disse a vítima, era mesmo o garoto Carlos Rodrigues. Pronto. Como era aparentemente culpado, eis o que basta para que muitos entendam que a tortura, afinal de contas, foi merecida. É exatamente assim que se constrói a barbárie.

À família de Carlos Rodrigues Junior, ainda que isso não sirva nem como consolo tardio, vai aqui, neste texto, pelo menos a lembrança de uma injustiça impressa no papel. Um papel que, se quisermos, podemos usar para forrar a gaiola do passarinho, enrolar o peixe de amanhã ou simplesmente rasgar.


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