Texto publicado no Jornal da Cidade - Bauru - 22 de dezembro de 2007
Há precisamente um ano atrás, em dezembro de 2006, um grupo de psicólogos, advogados, conselheiros tutelares e pais e mães de adolescentes internos da então FEBEM (hoje Fundação CASA) partiu de Bauru com destino a São Paulo para divulgar o relatório de uma inspeção realizada na instituição. O documento apresentava inúmeros relatos de agressões físicas, incluindo tapas, chutes e socos, agressões com escudos e cacetetes, invasões dos dormitórios para sessões noturnas de espancamento e banhos frios para minimizar os hematomas. Os relatos mais graves incluíam adolescentes espancados tão gravemente a ponto de urinar sangue. Nós, cidadãos bauruenses, ficamos perplexos e assustados ao constatar que a instituição cujo propósito declarado é “ressocializar” nossos adolescentes e ajudá-los a abandonar a criminalidade parecia estar, na verdade, torturando, espancando, humilhando; produzindo não novas perspectivas de vida mas ainda mais revolta, raiva e descrença nessa sociedade e em seu famigerado “pacto social”.Hoje, um ano depois, dezembro de 2007, nós, cidadãos bauruenses, encontramo-nos ainda mais perplexos e assustados. Estamos completamente chocados e indignados. Custa-nos acreditar no ocorrido. Custa-nos encarar os fatos. Custa-nos reconhecer que não fomos capazes de garantir o mais elementar dos direitos humanos a um adolescente: o direito à vida. Custa-nos aceitar que um menino de 15 anos tenha sido torturado no meio da madrugada em sua própria casa e recebido 30 choques elétricos. Custa-nos ainda mais acreditar que os responsáveis por sua trágica morte possam ser aqueles cujo propósito declarado é proteger a população.
O desfecho da história de Carlos foi absolutamente mais trágico e bárbaro. Mas ambas as situações aqui mencionadas nos falam de adolescentes humilhados, machucados e torturados por adultos. Ambos os casos revelam um paradoxo extremamente perverso: os agentes da violência contra o adolescente parecem ser justamente aqueles que deveriam ser responsáveis por sua integridade, por sua formação e por sua proteção. O que esperar do futuro de nossos adolescentes (e de nosso próprio futuro) se aqueles que deveriam cuidar, ensinar e proteger, na verdade humilham, ameaçam, espancam, torturam, matam?
Muitas vezes somos erroneamente levados a acreditar que os jovens são os grandes agentes da violência, mas as estatísticas não deixam dúvidas: os adolescentes, em especial os adolescentes pobres, negros e do sexo masculino, são a grande vítima da violência em nosso país. A realidade de vida dessa parcela da população nos remete, em certo sentido, ao conceito de “vida nua”, do filósofo Giorgio Agamben. A vida nua é a vida sem nenhum valor. É a vida dos sujeitos despojados de qualquer direito. A vida que pode ser descartada. A vida nua é a vida “matável”. E esse conceito nos parece adequado quando nos vem à mente a certeza de que o que aconteceu com Carlos jamais teria acontecido nos bairros nobres da cidade.
Aos olhos da sociedade, o adolescente da periferia ainda é o “menor”. Na prática, é um indivíduo que não tem direito a ter direitos. É vítima freqüente da violação de direitos, da falta de oportunidades, do abuso de poder e do descaso das autoridades. E o fato é que todos nós sabemos disso. E nos omitimos. Somos todos cúmplices e, portanto, co-responsáveis. E isso só pode ser indício de nossa dessensibilização, de nossa desumanização, de um profundo adoecimento social.
A história de Carlos e o sofrimento inominável de sua família constituem um grande símbolo da violação de direitos humanos de crianças e adolescentes brasileiros. Esperamos e lutaremos para que essa trágica história não se torne apenas mais um dado nas estatísticas da violência, mas que constitua um marco. Que represente o fim de uma era em que a sociedade bauruense (e brasileira) ainda se permitia fechar os olhos diante da violência policial e da flagrante violação dos direitos de nossas crianças e adolescentes. Caso isso não aconteça – urgentemente! – é possível que daqui a um ano, em dezembro de 2008, quando deveríamos estar comemorando os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, estejamos a lamentar mais uma tragédia.
Juliana Campregher Pasqualini, psicóloga, membro da Comissão de Criança e Adolescente do Conselho Regional de Psicologia (CRP) – Subsede Bauru
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Polícia tortura e mata rapaz em Bauru
“Eles chegaram às 3h e foram embora às 4h11, levando o meu irmão daquele jeito e, durante todo esse tempo, eu e minha mãe ficamos na sala, impedidas de sair. Protestamos quando ouvimos gritos e gemidos, mas um dos policiais mandou-nos calar a boca e nos ameaçou”. Esse é um dos trechos do relato feito ontem na Polícia Civil de Bauru (SP) por Débora Rodrigues, irmã do menor Carlos Rodrigues Junior. O jovem morreu na madrugada de sábado, segundo laudo do Instituto Médico Legal (IML), em razão de choques elétricos aplicados por policiais militares.
Na manhã de ontem, Débora e a mãe, Elenice Silveira Rodrigues, também fizeram o reconhecimento dos policiais por meio de fotografias. Inconformadas, ambas pediram “pena máxima” aos policiais agressores, justificando que a família delas já sofreu a perda, mas toda a sociedade continuará em risco se fatos como esse não forem exemplarmente punidos. Os PMs estiveram na casa do adolescente por suspeitarem de que ele teria participado do roubo de uma moto.
Eles também justificaram o ato dizendo ter encontrado maconha no quarto do rapaz, declaração que Débora questiona. Quanto à moto, Débora comentou que, quando ela e a mãe já estavam dormindo, um garoto, amigo de Carlos, teria pedido para guardá-la. “Nós estamos procurando saber quem é para esclarecer tudo”, disse.
Segundo Débora, mesmo com todo o dano, a ação dos policiais não chamou a atenção dos vizinhos pois nem ela nem a mãe puderam pedir ajuda. A rua onde moram, de pequeno movimento, permanece deserta e os vizinhos não falam com estranhos sobre o caso, principalmente porque a polícia está procurando identificar os autores dos atos de vandalismo
no bairro durante a manifestação pela morte do rapaz, ocorrida na noite do sábado.
O comando do 4º BPM proibiu ontem que policiais levem pertences pessoais nas viaturas. Eles terão que deixar no quartel suas mochilas ou armas particulares, passar por revista a cargo de seus superiores para só depois embarcarem no veículo de trabalho. Com isso, pretende-se evitar casos como o do menor Carlos Rodrigues Junior, no qual um policial foi surpreendido guardando um fio desencapado na viatura, e do mecânico Jorge Lourenço Filho, morto pela polícia em abril. Neste último caso, policiais foram acusados de forjar provas de confronto, colocando uma arma na mão do cadáver.
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